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Platão
Realizava-se um
banquete em casa de Agáton, poeta ateniense. Este conquistara o primeiro prémio do
Teatro Grego com um drama de que era autor e convidara os seus melhores amigos para com
ele celebrarem o seu triunfo os convivas discutiam um dos seus temas predilectos - o amor.
E cada um deles tentava, por seu turno, explicar a ideia que fazia de tão absorvente
tópico.
«O amor», dizia Fedro, «é o mais velho dos
deuses, e um dos mais poderosos. E a força que transforma em heróis os jovens vulgares,
pois o enamorado envergonha-se de parecer covarde diante da sua, amada. Dai-me um
exército de enamorados e poderei conquistar o Mundo.»
«Sim», concordou Pausânias, o orador seguinte,
«mas é Preciso distinguir entre o amor físico e o amor espiritual - a, atracção entre
os dois corpos, de um lado, e, de outro, a afinidade entre duas almas. O amor carnal cria
asas e foge ao passar o viço da mocidade. Mas o nobre amor da alma é perpétuo.»
Interveio então o comediógrafo Aristófanes,
com uma explicação completamente nova a respeito do amor. «Nos velhos tempos», disse,
«andavam os dois sexos unidos num só corpo. Esse corpo, redondo como uma bola, tinha
quatro mãos, quatro pés e dois rostos. Movimentava-se com assombrosa rapidez,
utilizando-se dos oito membros, como se fossem os raios de uma roda, numa série de
contínuos saltos mortais! Era terrível a força dessa raça de hermafroditas e ilimitada
a sua ambição. Planeavam escalar os céus e atacar os deuses, quando Júpiter teve uma
ideia feliz. "Cortemo-los em dois", disse, "e terão, assim, apenas metade
da sua força, e nós, o dobro dos sacrifícios." E, dito isto, o deus separou os
dois sexos, e desse dia em diante as duas metades daquele corpo outrora unido consomem-se
no ardente desejo de se reunirem outra vez num só. E é a esse anseio pela reunião dos
sexos que chamamos amor.»
Essa humorística interpretação do amor foi
seguida de varias outras definições interessantes até que, por fim, foi solicitado o
convidado de honra, Sócrates, a dizer algo sobre o assunto.
«Depois de tanta eloquência», principiou
Sócrates, «sinto-me petrificado. Como poderá a minha estupidez competir com tamanha
sabedoria?»
E, depois deste socrático prefacio de irónica
modéstia, começou a comparar toda a «sabedoria» deles com a sua «estupidez».
Despedaçou-lhes os argumentos com uma série de perguntas a que não sabiam responder -
foi Sócrates o fundador do método quis em educação - e continuou, então, esse
processo destrutivo com uma teoria construtiva sua. «O amor», observou, «é o ardente
anelo da alma humana pela beleza divina. O amante anseia não somente por encontrar a
beleza mais para criá-la, perpetuá-la, lançar no corpo mortal a semente da
imortalidade. É por isso que se amam os sexos um ao outro - para se reproduzirem e,
assim, prolongarem o tempo até à eternidade. E é por isso que as pais amam os filhas.
Porque a alma dos pais afectuosos cria, não apenas filhos mas também investigadores e
companheiros, colaboradores e sucessores na eterna busca da beleza. E que é essa beleza
que todos procuramos perpetuar através do amor? É a sabedoria, a virtude, a honra, a
coragem, a justiça e a fé. Numa palavra, beleza e verdade. E a verdade é o caminho que
conduz directamente a Deus.»
Os convivas aplaudiram o discurso do filósofo
descalço e, passando a tratar de assuntos mais prosaicos, entregaram-se a competidoras
libações durante toda a noite. Um por um, foram postos fora de combate até que, ao
cantar dos galos, restavam apenas três - Anstófanes, Agáton e Sócrates. Bebiam de uma
grande taça que passavam de um para o outro, enquanto, no mesmo tempo, Sócrates afirmava
aos dois poetas, semiadormecidos, que o grande comediógrafo deve ser também um grande
dramaturgo. Aristófanes foi o primeiro a pegar no sono; depois, ao romper da manhã,
adormeceu Agáton. Sócrates deitou-os delicadamente para que descansassem, bebeu uma
última taça em honra do deus do vinho, Dionísio, e reiniciou a sua tarefa diária de
difundir a sabedoria entre as cidadãos de Atenas.
Um dos convidados desse famoso banquete era um
discípulo de Sócrates, jovem que Imortalizaria mais tarde as proezas mentais e a
resistência física do seu mestre. Esse jovem chamava-se Platão.
Platão era um dos filhos predilectos da Fortuna. Como a Goethe,
a deusa havia-o dotado de todas as prendas que podia conceder a um mortal - origem nobre,
pais ricos, boa aparência, um espírito são num corpo robusto (apelidavam-no Plato, dizia-se,
em virtude dos seus ombros largos) e um apaixonado amor pela sabedoria. Nesta
procura do saber veio, aos vinte anos, a receber a influência de Sócrates, que tinha
naquele tempo, sessenta e dois anos (407 a. C.).
Platão venerou Sócrates desde o princípio. Reuniu-se ao grupo
dos jovens e brilhantes intelectuais que o acompanhavam pelas ruas da cidade, e ouvia-o,
assombrado e deliciado, desafiar os homens mais sábios de Atenas, forçando-os a admitir
a própria arrogância. Sócrates era feio como um sátiro e meigo como um santo. Um dos
seus discípulos mais inteligentes, Aicibíades, comparava-o àquelas estatuetas que se
vendiam em Atenas. «Têm o aspecto exterior de um sileno, mas, ao abri-las, encontramos
dentro, a imagem de um deus.»
No entanto, Sócrates não procurava atingir alturas divinas de
sabedoria sobre-humana. Dedicava-se, em vez disso, modestamente, como ele próprio
observava, à humaníssima tarefa de fazer perguntas. «Há apenas uma coisa que sei»,
dizia, «e é que nada sei.» E punha-se, então, a demonstrar a todos juntos e a cada um,
em separado, que os outros também, como ele, nada sabiam. Aplicava-se a aprender e a
persuadir os outros a aprenderem. «Minha mãe», dizia, «era parteira e procuro
seguir-lhe as pegadas. Sou ginecólogo mental; auxilio os outros a dar à luz as suas
próprias ideias.»
E assim discorria pelas ruas de Atenas este filósofo de frases
simples e feições grosseiras, Santo Sócrates, de nariz chato, lábios grosso, olhos
salientes, corpo tosco e pensamentos elevados. E em toda a parte fazia a sua pergunta
elementar:
Que significa isto? Que é a piedade? Que é a democracia? Que é
a virtude? Que é a coragem? Que é a honestidade? Que é a justiça? Que é a verdade? E
qual é o teu trabalho, e que conhecimento e habilidade lhe trouxeste? És, porventura,
homem de Estado? Neste caso, que aprendeste acerca de governo? És advogado? Que estudos
fizeste a respeito dos motivos das acções humanas? És professor? Que passos já deste
no sentido de vencer a própria ignorância, antes de te atreveres a atacar a ignorância
alheia?
Com tais perguntas procedia ao interrogatório dos que supunham
que sabiam muito e levava-os a reconhecer quanto eram néscios. Não o fazia, contudo, de
maneira perversa. Referia-se com a mesma veemência à própria ignorância. Conseguir a
verdade pela eliminação do erro era o seu único propósito. «Sigo no rasto da verdade
como um sabujo.» Na busca da verdade descurava os seus interesses, o seu trabalho - era
escultor de ofício - e a família. Mas a sua rabugenta esposa, Xantipa, jamais perdia uma
oportunidade de lhe recordar
negligência. Sócrates era um mártir da Filosofia. E que é,
perguntava ele, a Filosofia? O processo de raciocínio que nos dá a possibilidade de
conhecer a nossa própria personalidade. Gnothi seauton (conhece-te a ti mesmo).
A maioria das pessoas, todavia, ao conhecerem-se,
desiludem-se com os novos conhecimentos. Quando Sócrates retirou dos olhos dos Atenienses
o espelho da autolisonja e lhes colocou na frente o cristal da verdade, eles
horrorizaram-se com o resultado, porque viram, nesse cristal, não o reflexo de homens,
mas a imagem de bestas. E como bestas, puseram-se a perseguir Sócrates. Durante alguns,
anos, limitaram-se a ridicularizá-lo, invectivá-lo e desferir-lhe golpes ocasionais. Mas
verificou-se, então, uma conflagração na atmosfera moral de Atenas, e muitos dos
sentimentos mais puros dos cidadãos foram reduzidos a cinzas. Os Atenienses tinham sido
derrotados na guerra do Peloponeso (404 a. C.) - guerra travada entre a ditadura de
Esparta e a democracia de Atenas. A decência humana, a dignidade da. vida e o sentido da
liberdade individual tinham recebido um golpe mortal. Crícias (1) derrubara o
governo livre. E quando, por seu turno, Crícias foi derrubado, o Estado mergulhou numa
revolução na qual se viram à solta as mais vis paixões da Humanidade. Atenas deixara
de ser lugar seguro para a vida dum filósofo - e muito menos para um filósofo que ainda
ousava insistir na livre expressão do seu pensamento.
Uma certa manhã, Sócrates encontrou afixada a seguinte
acusação contra ele:
Sócrates é culpado de crime: primeiro, por não adorar os
deuses que a cidade adora, mas introduzir novas divindades suas; segundo, por corromper a
mocidade. A pena que lhe cabe é - a morte.
O principal instigador dessa acusação era um mercador
de couros, chamado Ânimo. Esse homem nutria um velho rancor pessoal contra Sócrates,
pois este aconselhara-lhe o filho a desistir das alcaçarias paternas e a dedicar-se ao
estudo da Filosofia. Esta criminosa corrupção da mocidade, insistia Ânito, outra coisa
não merecia senão a pena de morte.
Era uma questão de couro contra a sabedoria. Venceu o couro.
Sócrates foi preso e submetido a julgamento.
(1) Crícias, o mais
conhecido dos tiranos estabelecidos em Atenas pelos Espartanos. Morreu num combate, quando
tentava reconquistar o Pireu a Trasíbulo (450-403 a. C.).
O filósofo poderia, se quisesse, escapar à pena de morte, pois
a lei ateniense concedia a um condenado à morte o direito de optar pelo exílio como
alternativa. De mais a mais, certo número de amigos ricos, inclusive Platão, conseguira
subornar o carcereiro. Sócrates poderia escapar se assim o entendesse. Mas não quis. O
seu dia chegara, e ele estava pronto a partir. Prepara-se, durante toda a vida, para
enfrentar o perigo e, se necessário, a morte. Quando jovem, ganhara o prémio por bravura
no campo de batalha. Na maturidade, quando senador, ousara desafiar a população inteira,
que reclamava a morte de um acusado de covardia. Anos depois, fora igualmente corajoso ao
desafiar Crícias. Ordenara-lhe o tirano que trouxesse de volta a Atenas um «rebelde
democrático» chamado Leonte, que fugira para Salamina. Sócrates recusou-se a obedecer a
essa ordem. «Teria sido morto, provavelmente, por causa disso», diz-nos Sócrates, «se
não tivesse caído o governo de Crícias.» E agora, que estava realmente condenado à
morte, não titubeava. Era melhor morrer enquanto ainda conservava intacta a sua força
que continuar a viver a caminho de uma desamparada senilidade. Sempre orgulhoso da sua
resistência física - era o único, em Atenas, que conseguira andar descalço sobre o
gelo, no rigor do Inverno - não tolerava a ideia de uma vida inactiva. «Enfrentemos a
morte, como enfrentámos a vida, corajosamente. Não consiste a dificuldade, ó juízes
meus!, em fugir à morte, mas à culpa, pois esta por ser mais veloz do que a morte,
agarra-nos com muito maior rapidez... Fui alcançado pela morte e os meus acusadores pela
iniquidade... Submeto-me à minha punição, e eles devem submeter-se à sua.»
No último dia de vida, visitou-o na prisão um grupo de
discípulos. Platão descreve a cena no seu Fédon, obra que se ergue entre os
grandes poemas épicos do Mundo. Os discípulos agruparam-se à volta do mestre amado.
Sócrates chamou um de]es para junto de si e afagou-lhe os
cabelos, enquanto explicava as suas ideias sobre a vida e a morte, e a imortalidade da
alma. A morte é um sono eterno - suave esquecimento imortal em que não existe
perseguição, nem injustiça, nem desilusão, nem sofrimento, nem aflição - ou uma
porta através da qual passamos da Terra para o Céu, átrio que conduz ao palácio de
Deus. «E lá', meus amigos ninguém é morto pelas suas opiniões...
Alegrem-se, portanto, e não deplorem a minha' morte ... Quando
me descerem à sepultura, lembrem-se de que estão a enterrar apenas o meu corpo e não a
minha alma.»
Aproximava-se a hora do pôr do Sol. O carcereiro entrou com a
cicuta. «Peço-te que não te zangues comigo, Sócrates; pois outros, como sabes, são a
criminosa causa da tu morte e não eu.»
E o carcereiro estendeu a taça a Sócrates e rompeu em pranto,
ao voltar-lhe as costas.
«Nós outros, também, não podemos por mais tempo suporta-lo,
e, embora não quiséssemos, corriam-nos abundantes as lágrimas ... Apenas Sócrates se
mantinha calmo. "Que tolice é essa" exclamou ele. "Mamdei embora as
mulheres, principaImente para evitar uma cena semelhante...Aquietem-se, pois, e deixem-me
morrer em paz." Ouvindo isso, corámos e retivemos as lágrimas ... E Sócrates,
tendo bebido a cicuta, deitou-se sobre a enxerga, pois o carcereiro dissera-lhe que assim
fizesse. A pouco e pouco progrediu o veneno dos pés para o coração. Seguiu-se então um
movimento convulsivo e os olhos de Sócrates imobilizaram-se ... Tal foi o fim do nosso
mestre, a quem posso, verdadeiramente, chamar o mais sábio, o mais suave e o melhor de
quantos homens jamais conheci.»
Quando Sócrates morreu (399 a. C.), Platão achou conveniente
sair de Atenas, pois os seus esforços para salvar o mestre tinham-no colocado em
evidência. Encetou uma jornada «à volta do Mundo» - isto é, o mundo conhecido naquele
tempo. Quais os países que visitou não poderemos dizer exactamente. É provável,
contudo, que tenha ido à Itália, onde travou conhecimento com a Filosofia mística de
Pitágoras, «o fundador da Matemática e o pai da Música». De lá, diz-se que foi à
Sicília, à Cirenaica, ao Egipto, à Judeia e até às margens do Ganges. Se não visitou
pessoalmente todos esses países, percorreu-os, decerto, com o pensamento, pois, ao
regressar a Atenas, após uma peregrinação de doze anos, tinha-se-lhe transformado o
espírito num cofre de todo o saber acumulado no Mundo.
Sócrates, contudo, era ainda o seu mestre supremo. Desse momento
em diante, dedicaria a vida ao ensino das verdades socráticas. Com esse propósito,
instalou uma escola de Filosofia num jardim de Atenas, conhecido como a Academia, sítio
encantador, plantado de plátanos e adornado de templos e estátuas. Aí, na margem
de um rio, com
Um som como o de oculto regato
No frondejante mês de Junho,
Que para os bosques dormidos toda a noite
Canta uma plácida canção,
estabeleceu a sua Academia e começou a expor a doutrina
socrática, ou, como lhe chamamos hoje, a doutrina platónica. Platão apresentou
todas as suas ideias, sob a forma de diálogos, pela boca de Sócrates, de forma que ainda
não sabemos exactamente onde acaba o pensamento de Sócrates e onde começa o de Platão.
Uma coisa. sabemos, todavia - que, para Platão,
como para Sócrates, o significado e a missão de toda a
Filosofia consistem na instituição da justiça entre os homens. «A justiça»,
diz Sócrates, «é a única feIicidade verdadeira. Apenas os injustos são infelizes.» E
Platão acrescenta falando como de costume através da boca de Sócrates, «ninguém até
agora condenou a injustiça ou elogiou a justiça (parece desconhecer os ensinamentos dos
profetas hebreus ...) Ninguém até agora investigou porque é a injustiça o maior dos
males que tem a alma dentro de si e a justiça o bem maior».
E foi a fim de averiguar a natureza da justiça que compôs os
seus Diálogos imortais. Referindo-se a esses Diálogos, repete Emerson as
palavras de Omar (1) sobre o Alcorão: «Queimai as bibliotecas porque o valor
delas está neste livro.» Foi Platão, talvez o mais compreensivo dos grandes pensadores
do Mundo. «De Platão», tornamos a citar Emerson, «procedem todas as coisas que ainda
são escritas e debatidas entre os homens de pensamento.» Com efeito, não há um único
tema de interesse humano em que Platão não tenha tocado, na sua pesquisa, que durou toda
a vida, dos princípios da justiça. A fraternidade universal do Homem, a eugenia, o
socialismo, o comunismo, o feminismo, o controlo da natalidade, o amor livre, a livre
expressão, os duplos e simples padrões de moralidade, a posse pública das riquezas, das
mulheres, das crianças - são apenas alguns dos problemas tratados nos seus Diálogos.
Contudo, no
(1) OMAR I, guerreiro árabe.
Conquistou a Síria, a Pérsia e o Egipto. Acusam-no de haver lançado fogo à rica
biblioteca de Alexandria, a pretexto de que havia nela livros contrários à fé
muçulmana.
fundo de todas essas discussões há um propósito único: o seu
desejo constante de ver a rectidão - ou como lhe chamamos hoje, a
equidade - estabelecida sobre a Terra. A rectidão no indivíduo e a equidade no
Estado. Deseja ver um Estado em que Sócrates, em vez de ser assassinado, fosse
eleito rei. Descreve esse país imaginário, pelo qual o seu coração anela na sua
República, a primeira utopia da história.
A fim de fazermos uma ideia adequada de A República de
Platão, examinemos a vida dos seus cidadãos, a partir do nascimento.
As crianças, nascidas nesse Estado utópico, terão de ser o
resultado de uma união comunal Os melhores homens unir-se-ão às melhores mulheres, com
o propósito único de produzirem uma prole superior. Os homens possuirão em comum essas
mulheres; não haverá casamentos individuais nem famílias particulares. Imediatamente
após o nascimento, as crianças serão tiradas aos pais e colocadas num infantário do
Estado. «É essencial que os país não conheçam os próprios filhos, ou os filhos os
pais. Somente desta maneira pode tornar-se um facto a fraternidade universal, em lugar de
ser apenas uma teoria, pois todos, nesse Estado comunal, podem ser verdadeiramente
considerados como irmãos uns dos outros.»
Quanto aos pais, não precisarão de limitar as suas
experiências sexuais aos respectivos companheiros. Se, depois de haverem dado crianças
ao Estado, desejarem «divertir-se à vontade», podem fazê-lo - com a condição de «se
obrigarem a abortar qualquer embrião que, assim, possa vir a formar-se».
A questão do amor livre é, dessa forma, deixada à discrição
do indivíduo, e isto aplica-se tanto às mulheres como aos homens. A vida particular dos
cidadãos não diz, de modo algum, respeito ao Estado. Tudo quanto o Estado requer é que
os cidadãos não se molestem uns aos outros ao procurarem a sua felicidade individual.
Tornemos, no entanto, às crianças.
Desde que nascem, são, como vimos, entregues aos cuidados do
Estado. Até à idade de vinte anos, recebem todos a mesma educação. Essa educação
preliminar consiste principalmente em ginastica e música - ginástica para desenvolver a
simetria do corpo, e música para desenvolver a harmonia da alma. «O homem que não traz
música na alma não é digno de confiança», pois o seu espírito é defeituoso, as suas
paixões desequilibradas e falseado, para sempre, o seu sentido do bem e do mal. A música
- e a música, para Platão, abrange toda a harmonia, audível ou não - é o princípio
fundamental que impede o Mundo de cair num caos incongruente. É a alma do Universo, assim
como os planetas e as estrelas são o seu corpo. Sem elas, seria a Terra um carvão
apagado e os Céus um punhado de cinzas mortas.
A música, portanto, é a parte essencial da educação. Antes de
atingirem a idade dos vinte anos, devem todos os rapazes e todas as raparigas conhecer a
fundo os rudimentos da música e da ginástica. Hão-de ser coeducativas as escolas em que
se estudam essas matérias. Os rapazes e raparigas hão-de trabalhar e brincar juntos.
Tanto elas como eles despir-se-ão para fazer os seus exercícios, pois, como diz Platão,
os cidadãos do seu Estado ideal andarão «suficientemente cobertos com as vestes da
virtude». Há mister de que não subsista nenhuma ridícula noção de pudor.
Além disso, há-de a educação das crianças não somente
libertar-se de afectadas pudicícias, como também abster-se de trabalhos penosos e
esfalfantes. O ensino há-de ser transformado em prazer e não em tortura. Sob a
orientação de mestres adequados, a criança normal apreciará tanto a ginástica
espiritual como os exercícios corporais. Uma escola será, portanto, um ginásio mental,
um campo de recreio intelectual, onde as crianças procurem exceder-se umas às outras no
desporto fascinante da troca de ideias.
Assim deverá ser a educação na «república», até à idade
de vinte anos. Depois, realizar-se-á uma vasta escolha. Os incapazes de educação
ulterior serão relegados para a classe mais baixa - isto é, lavradores e comerciantes.
Estes constituem o componente inferior do Estado.
Após a eliminação desse componente inferior, os outros devem
prosseguir o seu adestramento. Durante os dez anos seguintes - isto é, dos vinte aos
trinta - empreenderão o estudo das Ciências: Aritmética, Geometria e Astronomia. Essas
matérias, no entanto, devem ser estudadas mais por motivos de ordem estética do que de
ordem prática. Platão considerava aquém da dignidade dos melhores cidadãos da sua
«república» a utilização da Aritmética no comércio, na construção de pontes, ou
no fabrico de máquinas. A esse respeito, não diferia dos outros gregos do seu tempo, que
não se interessavam pelas invenções mecânicas ou pelo progresso material, preferindo a
especulação abstracta ao conhecimento concreto. O estudo dos números, segundo Platão,
servia apenas para duas coisas - permitir ao filósofo o entrever a unidade real através
da diversidade aparente das coisas e permitir ao comandante militar dispor os seus
soldados em pelotões, companhias e regimentos. São, portanto, os filósofos e soldados
os únicos que necessitam de um estudo profundo da Matemática.
Completado o estudo das Ciências aos trinta anos, realizar-se-ia
uma segunda escolha. Os que não logram aprovação no exame para um treino ainda mais
elevado devem reunir-se numa classe média - os soldados. Destinam-se à guarda do Estado.
Desempenham os soldados um papel muito importante na «répública» de Platão.
Consagram-se a formar, não uma força agressiva, mas um poder defensivo. Platão odiava a
guerra, mas compreendia que a melhor maneira de desencorajar um possível agressor era ele
saber que teria de enfrentar uma espada invencível.
Temos, pois, na sua «república», uma classe média de soldados
- ou, como lhes chama Platão, guardiões - em adição à classe mais baixa, que,
recordamos, consiste nos que foram eliminados aos vinte anos, por inferioridade de
inteligência. A classe média abrange todos aqueles que, aos trinta anos, se mostraram
incapazes de ulterior desenvolvimento mental. Os de mentalidade superior, que escapam às
referidas duas eliminações, estão, agora, prontos para encetar o estudo da Filosofia.
Têm trinta anos. São estes os homens e mulheres que se destinam a dirigir o Estado. Na
«república» de Platão, corno vimos, há igualdade completa entre os sexos. Recebem o
mesmo treino, e permite-se-lhes alcançar as mesmas posições, quando aptos a iniciar a
difícil tarefa da vida. Após um curso de cinco anos de Filosofia, estes homens e
mulheres seleccionados terminam a sua preparação teórica, mas falta-lhes ainda a
educação prática. Devem passar por um curso posterior de bom governo; descer das
alturas da sua contemplação ao mundo desordenado da vida quotidiana; experimentar o
«sabor» da vida antes que se lhes
permita tomar parte na sua direcção. Por quinze anos,
envolverse-ão em misteres práticos, até que, aos cinquenta, estejam finalmente capazes
de assumir o papel de filósofos-reis. Porque, na «república» ideal, apenas o filósofo
é digno de ser o dirigente. «Só quando os filósofos se tornarem governantes ou os
governantes estudarem Filosofia é que se conseguirá pôr termo às aflições dos
homens.»
E porque se diferencia o filósofo dos seus semelhantes?. Por
compreender a ideia perfeita de Deus, da qual o mundo material é apenas uma cópia
imperfeita.. A ideia de Deus, o divino segredo da vida, é como luz brilhante no céu. Mas
os nossos espíritos são, aqui em baixo, pedaços de defeituosos espelhos, nos quais a
ideia de Deus se reflecte indecisa, grotesca e irreconhecível. O filósofo tem por
missão polir e dar forma ao espelho do seu espírito, a fim de receber uma imagem clara
da ideia de Deus, do divino segredo, da luz da razão que dirige as estrelas no céu e os
problemas dos homens. E, ao receber essa clara indicação do propósito de Deus, cabe ao
filósofo, em seguida, a tarefa de incorporá-la ao melhor governo possível para o seu
Estado ideal.
Porque o Estado ideal deve sempre ser governado pelos melhores.
E, na «república» de Platão, são os filósofos, ao mesmo tempo, pelo adestramento e
pela predisposição natural, os «escolhidos de entre os melhores» homens e mulheres que
o Estado foi capaz de produzir. Esses filósofos dirigentes constituem a classe mais alta,
e é às outras duas classes que cumpre obedecer-lhes em todas as ocasiões. A fim de
assegurar a honestidade desses funcionários públicos, não haverá entre eles
propriedade privada. Tudo possuirão em comum. Tomarão as suas refeições em
refeitórios públicos, e dormirão juntos em alojamentos adequados. Não tendo interesses
pessoais, estarão a coberto do suborno e terão uma única ambição - estabelecer e
perpetuar a Justiça entre os homens.
Conhecemos agora a estrutura completa do Estado
ideal. Inscrevamos-lhe nas portas: «Esta é a Cidade da Justiça» - e penetremos nela, a
fim de que possamos examinar alguns dos seus traços mais interessantes. Em primeiro
lugar, descobrimos que os filósofos-governantes, expulsaram desta cidade o seu poeta
épico, Homero, juntamente com o seu sistema pagão de politeísmo. É um insulto à sua
inteligência acreditar nas narrativas infantis acerca dos deuses olímpicos a pavonearem
as suas fraquezas humanas no decorrer das páginas da Ilíada. A religião deve ser
purificada de todos os seus mitos selvagens e milagres supersticiosos. Devemos conservar
apenas a religião compatível com a razão humana.
Isso quanto ao tratamento dispensado aos deuses
'ia «república» de Platão. Que há sobre as relações entre homem e homem? Essas
relações baseiam-se na estrita observância de uma conduta imparcial. Os negócios são
considerados como degradantes, porque - afiança Platão - um negociante não pode, ao
mesmo tempo, prosperar e ser honesto. Os criminosos, na «república» de Platão, são
considerados como dignos de piedade. A sua actividade é reprimida, não punida, pois a
maldade é o resultado da ignorância. Se um homem comete um crime, fá-lo porque não foi
convenientemente educado. É uma criatura merecedora de compaixão, que não compreende os
próprios interesses nem os dos seus semelhantes. Assim como não se pode tornar dócil um
cavalo selvagem chicoteando-o também não é possível regenerar um delinquente
tratando-o simplesmente como um réprobo. Se um criminoso é louco, mister
curar-lhe a loucura. Se ignorante, é mister ensiná-lo. Evite-se o crime com o remédio
da sabedoria, mas não se flagele o criminoso com o chicote da punição.
A enfermidade física, como a enfermidade moral, é devida à
ignorância. Uma educação adequada eliminará as doenças em larga escala. Aos que,
todavia, se encontram incuravelmente doentes, deve-se apressar misericordiosamente a sua
morte, pois ela é preferível a ter de suportar uma longa doença.
Os advogados na «república» de Platão são um mal
desnecessário. Onde há conhecimento não há possibilidade de litígios. As leis que
governam o povo são poucas e de fácil interpretação, pois os dirigentes do Estado
sabem que cada lei nova traz em si a semente de uma nova classe de contraventores. Esses
dirigentes ensinam os cidadãos a governarem-se a si próprios, de forma que a necessidade
de policiamento se reduz ao mínimo.
A principal tarefa do governo na «república» é assegurar a
felicidade dos governados, dar-lhes saúde, contentamento e descanso. «Dai-me saúde e
concedei-me um dia», escreve Emerson, «e tornarei ridícula a pompa dos imperadores.»
Saúde, contentamento e um dia - um dia de beleza azul e dourada que dure a vida inteira -
é, para Platão, quanto basta para a felicidade humana. Uma. vida de beleza, uma vida de
justiça, uma vida de amor. Essas três palavras - beleza, justiça, amor - São quase
sinónimas na filosofia de Platão. O homem bom, o homem feliz - pois ser bom é ser feliz
- é o homem justo, o homem harmonioso, o homem cujas qualidades de carácter
perfeitamente afinadas executam sempre a nota certa na sinfonia da cooperação social.
Esse homem ideal da «república» ideal de Platão é consagrado à criação da beleza,
seja na sua prole viva, seja em obras de arte ou em nobres feitos. Porque a beleza é a
contra-senha da imortalidade. Ao criarmos beleza, vencemos a morte.
Tal era o sonho filosófico de Platão, o sumo sacerdote da
religião da Beleza. Ele construiu uma cidade de super-homens, dedicou-a ao seu padrinho
Apolo, o Senhor da Luz, e colocou-aentre as estrelas, para que nela os arquitectos do
futuro vissem o modelo para as suas próprias tentativas de aproximar a Terra do Céu.
Não se satisfez Platão, todavia, com a simples criação de um
sonho. Como o filósofo chinês Confúcio, tentou pôr em prática as suas teorias
filosóficas. A convite de Dionísio, foi a Siracusa e procurou mostrar a esse monarca a
maneira de governar como homem sábio. Dionísio, todavia, era apenas rei e pouco dado a
filosofias. Amedrontado com algumas ideias radicais de Platão ameaçou-o de morte. Por
intercessão de alguns amigos do filósofo, poupou-lhe a vida mas vendeu-o como escravo. E
assim, Platão, em vez de transformar Dionísio num rei-filósofo, foi por ele
transformado num filósofo-escravo.
Felizmente para Platão, o homem que o comprara a fim de lhe
educar os filhos não era apenas amante da sabedoria mas também amante da justiça. Pôs
Platão em liberdade e permitiu-lhe que regressasse a Atenas.
Ao voltar para a cidade natal, Plaltão recebeu urna carta em que
Dionísio lhe pedia desculpa. O episódio - desculpava-se o tirano - fora um terrível
engano, e ele esperava que Platão lhe perdoasse e não fizesse mau juízo a seu respeito.
A essa carta, respondeu Platão desdenhosamente: «Estou muito ocupado com a minha
filosofia para perder tempo a pensar em Dionísio.»
Durante muito tempo continuou as suas calmas
conversações filosóficas no jardim da, sua Academia - conversações que eram como um
discurso celestial. Em verdade, «se Júpiter descesse à Terra, falaria no estilo de
Platão».
Piatao, no entanto, era um Júpiter mortal. Um dia, no seu
octogésimo primeiro ano, quando assistia à festa nupcial de um jovem amigo sentiu-se
fatigado pela algazarra que os folgazões faziam. Pedindo que o desculpassem, foi para
outra sala mais sossegada, «a fim de dormir um pouco», como disse. A festa tornou-se
cada vez mais barulhenta. Os convivas esqueceram-se do velho e cansado filósofo, que
procurava descansar no meio de toda aquela confusão.
Horas depois, pé ante pé, o noivo entrou na sala para ver como
estava o mestre. Platão dormia profundamente. Os insignificantes ruídos do Mundo já o
não perturbavam. O filósofo-rei, o rei dos filósofos, fora, por fim, chamado a entrar
na pacífica «república» da Morte.
Desta inserção, acabada em 05/11/99, desconhece-se o autor, a data de
publicação e o local.
Se porventura entre os leitores do texto alguém o puder identificar agradecemos que no-lo
comunique para aditar os respectivos céditos.
Se ainda tem o fundo em preto é porque não passou o ponteiro do rato sobre a vela.
Faça-o. |