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AS APROXIMAÇÕES
Agostinho da Silva (1990)
SOBRE ESCRAVATURA
Quando se diz
que a mentalidade humana é de carácter predominante histórico, é isso verdade apenas
até um certo ponto; quero eu dizer que se gosta ou se tem mesmo, por efeito de estruturas
essenciais que se não podem modificar, de ordenar todo o acontecimento por um critério
de tempo, se é que o próprio conceito de acontecimento não implica já, como é muito
mais de aceitar, o tal critério de ordenação no tempo. Ainda se poderia dizer, tomando
a palavra noutro sentido, que há muito quem se escape por meio da história de tomar
posições quanto ao presente; são os que pacientemente vão averiguando o que se passou
num esforço de se evadir ao que o seu próprio tempo deles reclama. E ainda, numa
terceira posição, o grupo altamente respeitável dos que vêem o presente já como
história e achando que o mundo se move por meio de forças íntimas e ocultas de que
somos jogo e não agente, crêem que a única posição verdadeiramente inteligente é a
de entender e relatar os acontecimentos ligando-os pelo nexo de sucessão no tempo que
tanta vez se confunde com causalidade.
Mas a mentalidade histórica que consiste em ver um determinado acontecimento ou uma
determinada corrente de ideias como absolutamente compreensível dentro de um certo
número de circunstâncias contemporâneas e mais do que isso como a única possibilidade
dado o ambiente histórico que existia à sua volta; mais ainda, a mentalidade histórica
que, aproveitando-se da favorável circunstância de, tomadas as coisas no seu aspecto
vulgar, ser o passado alguma coisa de inteiramente anterior ao presente, mostra como o que
sucedeu estava preparando, da única ou pelo menos da melhor maneira possível, o que
viria depois; essa mentalidade histórica é muito mais rara.
Em geral, se toma perante o que
sucedeu não uma posição histórica, mas uma posição de absoluto; é á luz de uma
metafísica ou de uma moral sobranceira ao tempo que se julgam os homens, os
acontecimentos e as ideias. Não o quero dizer reprovável; só que me parece que se
confundem duas coisas, e tenho para mim que a confuso é um dos pecados mais graves. A
favor da mosca ou a favor da águia, a minha primeira obrigação é a de não confundir
um dos bichos com o outro bicho. Ora, na realidade, depois de sabermos e termos aceitado
que o homem saiu de um e a ele tenta voltar numa tão dura, tão difícil e tão perigosa
jornada, é pelos critérios estáticos do paraíso que o julgamos, e, mais grave, o
tentamos explicar, não pelos critérios realistas e relativistas do seu caminho pela
terra. E o que sucede por exemplo quando o socialista vulgar se põe julgando os que
participaram ou participam do sistema capitalista ou quando, na corrente contrária, se
fazem grandes retóricas sobre os excessos das revoluções e das guerras sociais.
Talvez em nenhuma outra
questão se surpreendam tão intimamente misturados como no caso da escravatura todos
estes critérios e concepções. Vêm em primeiro lugar os que põem acima de tudo a
questão moral e reprovam toda a espécie de escravatura sem quererem saber para nada das
circunstâncias em que o fenómeno se desenvolveu. Tudo lhes aparece como uma espécie de
perversidade da raça humana, como uma das melhores provas de um gosto pelo mal que tão
ligeiramente lhe atribuem. O homem escraviza o homem pelo prazer de dispor de um ser
humano sobre o qual possa, sem perigo, saciar os seus instintos maléficos. E, como
acontece em todos os casos em que o acreditar se alheia do compreender, e até o vê como
inimigo, todo o argumento racional se torna inútil. Nada obtém o mostrar-se como nas
próprias sociedades que praticaram a escravatura se lhes apontou muitas vezes o que tem
de terrível e como todo o progresso técnico da humanidade se emprega logo que possível
no sentido de atenuar ou abolir a escravatura. São os que não querem ou não podem ver
como uma nova forma de atrelar cavalo ajuda o servo da gleba e como a máquina a vapor
transportada para o Norte dos Estados Unidos possibilita a Lincoln assinar o seu Acto de
Emancipação.
O mais grave, porém, me parece ser que explícita ou implicitamente a condenação que
lançam sobre a escravatura é uma condenação que lançam sobre o ócio. Quero eu dizer
o seguinte: o que censuram no fundo é que um determinado grupo social tenha lançado
sobre outro a obrigação de trabalhar, isto é, de assegurar a produção, reservando-se
eles próprios tarefas de dirigentes que na maior parte dos casos podiam ser exercidas por
amadores, neste caso os políticos, e deixavam para a maior parte o tempo livre. Não se
repara que foi exactamente esse tempo livre que possibilitou a realização de todas as
grandes obras de que hoje se orgulha o mundo. Não foram homens esmagados de trabalho que
compuseram música ou poesia, conceberam e executaram pintura e escultura, ou, num
domínio que mais interessa para a solução do problema, fantasiaram a ciência que
depois, transformada em técnica, contribuiria para progressivamente ir libertando o
escravo. Não temos nada que abolir escravos se isso significa que ninguém ficará com
tempo livre para coisa alguma que não signifique assegurar a subsistência. O que temos
é de inventar escravos que nos não ponham, trabalhando para nós, problemas de
consciência. E os inventamos pelo sacrifício, consentido ou não, de milhares de homens
em milhares e milhares de gerações: as máquinas que hoje temos à nossa disposição
não são mais do que escravos de aço que só esperam que tenhamos mais um lampejo de
inteligência, libertando-nos de sistemas económicos quase inteiramente superados, para
os podermos utilizar a pleno rendimento.
Por outro lado formam os que
supõem ou preferem supor que o escravo é um fenómeno inteiramente histórico e, como
tal, ultrapassado. Negam-se, com esforço ou sem esforço, a olhar de frente as realidades
do mundo, tanto mais de olhar quanto possuímos hoje os meios mais que bastantes para as
modificar. Negam-se a ver como em extensas regiões do mundo o escravo existe nas
condições em que existia na Antiguidade ou na Idade Média, só que as vezes com uma
situação mascarada pelo direito, o que agrava o seu aspecto moral. Falam por exemplo dos
escravos que vinham da África, mas não falam dos escravos que ainda existem na África,
em poder de muçulmanos e, o que é mais grave, em poder de cristãos; e, o que é
gravíssimo, em poder de católicos, para os quais a fraternidade deve ser a ideia e a
palavra de base. Nem jamais falam de seus escravos em seus próprios países.
A vida nos cega para muita
coisa, mesmo aos mais clarividentes e aos mais sensíveis dentre nós. Ainda pode ser que
nos deixe ver o que é o tormento do homem do sal, do homem do cacau, do homem do ouro e
dos diamantes, na África, de norte a sul. Ainda nos pode levar por imaginação a supor a
terrível vida dos que são obrigados a suportar regimes políticos que lhes não agradam.
Pode ser que, num mais alto grau, repare-mos as vezes no que é a vida de um assalariado
na maior parte dos países, submetido a um trabalho monótono e longo e, o que é mais
terrível, sem compreender como se integra na tarefa geral do mundo e sem nenhuma
segurança de que num mercado de trabalho sujeito às leis de oferta e de procura ele
tenha trabalho e, portanto, meios de aquisição, num futuro mais ou menos próximo.
Mas, para outras formas de escravatura, os
nossos olhos encontram-se inteiramente fechados; a nossa desculpa é que são formas mais
subtis, mais continuadas e por assim dizer mais naturais de escravatura. Por exemplo, a
das crianças, obrigadas a viver num mundo inteiramente construído para adultos e por
eles inteiramente dirigido, o que explica que toda a fantasia, a libertação de
criação, a capacidade de atenção e a íntima delicadeza das crianças quase que
inteiramente venham a desaparecer no adulto; por exemplo, a das mulheres adstritas a um
trabalho doméstico que infinitamente e monotonamente recomeça, como se a sua única
missão na vida fosse a de ter comida e alojamento prontos para um exército de
trabalhadores; por exemplo, e ainda é talvez a mais grave, a escravatura a uma
especialização exigida, por critérios de utilidade social, de homens, de seres humanos,
criados para a infinita liberdade da totalidade das tarefas, para serem, dentro de seus
limites de espaço e de tempo, a fiel imagem, e a adorada imagem, da força, da
possibilidade, da apetência infinita que os gerou.
Se ainda tem o
fundo em preto é porque não passou o ponteiro do rato sobre a vela. Faça-o. |